A distância não existe quando o amor está no íntimo da alma
Por Neide Fonseca
Não quero nesse texto falar do sindicalista Lúcio Guterres, presidente da CUT-MG, quero falar do homem Lúcio Guterres, com o qual convivi nesses últimos sete anos, por isso inicio com uma frase encontrada em sua agenda de 2006, no dia 15 de dezembro, escrita por ele a lápis, enquanto participava de uma atividade política em Minas Gerais:
"Eu deixei um câncer me pegar, mais ele não vai me matar".
Essa frase, cunhada em um momento de dor e reflexão profundas, demonstra a determinação de um homem que amou, riu, chorou, sofreu, lutou, superou seus limites, enfim, que viveu intensamente deixando marcas por onde andou.
A morte para Lúcio tinha um significado diferente. Para ele o pior não era a morte física, o coração deixar de bater, para ele o pior é quando mesmo um coração batendo saudável a pessoa age como se estivesse morta, não se importando com o que ocorre ao seu redor. Ou seja, pessoas que não têm como princípio de vida a solidariedade. Para ele essas pessoas estão mortas, apenas não sabem que estão.
Assim, nestes últimos meses, embora o câncer tenha se complicado, como um guerreiro que a cada dia se levanta com uma luta por vencer, ele reafirmava que o câncer não o derrubaria, fazendo da frase abaixo o seu mantra diário:
"Eu não me entrego, morro na trincheira lutando pelo que acredito".
Não restam dúvidas, Lúcio morreu na trincheira, sendo solidário com trabalhadores, com a humanidade. Tive o privilégio de passar a última semana com Lucio. Ele pediu para que eu fosse a Belo Horizonte para o lançamento da Campanha de Medula na segunda-feira e ficasse por lá até na quinta-feira, quando então viríamos para São Paulo dar prosseguimento ao tratamento no Hospital do Câncer.
Por isso posso dar meu testemunho de que ele não se entregou. Morreu na trincheira. Na segunda-feira à tarde fez uma coletiva de imprensa (entrevistas para radio, TV, jornais). Na terça-feira, quando a CUT-MG fazia 24 anos, ligando a data à Campanha de Doação de Medula, deu entrevista ao vivo para a TV Bandeirantes, gravou programas de rádio, e foi para o Hemominas onde vários companheiros e companheiras deram início a Campanha de Doação.
Entretanto, suas duas últimas atividades políticas na quarta-feira, véspera do acidente, uma durante o dia na DRT, e a outra à noite, na Faculdade, marcam definitivamente o caráter desse homem chamado Lucio Guterres.
Após tomar a medicação de rotina no Hospital Life Center, Lucio, embora não estivesse bem fisicamente, foi à luta. Juntos, fomos a uma reunião na DRT, onde se apresentou ao Delegado e tratou de barrar a demissão de funcionários. Depois foi para casa, conversou longamente com Marcelo, que como ele dizia mais que seu filho era seu melhor amigo.
À noite mal conseguindo caminhar foi para a Faculdade Estácio de Sá, onde cursava Direito. Pediu ao professor para parar a aula, e fez um discurso brilhante sobre o valor da vida, deixando sua última mensagem para que todos doassem Medula, senão para ele, mas para quem fosse compatível.
A faculdade parou. As pessoas se emocionaram, ao ver aquela imagem de homem frágil/forte, forte/frágil, chorando e abraçando a todos e todas, incentivando-os à vida, à solidariedade.
Depois disso Lúcio me levou para jantar, e tudo foi muito lindo. Conversamos sobre tudo. Sobre sua vida desde a infância, coisas que já havia me contado e outras que eu ainda não sabia. Sua juventude, seus sonhos, suas conquistas, filhos, ex-amores, o que deveria fazer antes da "ultima viagem", etc.
Fizemos acertos dos nossos desacertos. Falamos dessa e de outras vidas. Nos reencontramos dos nossos muitos desencontros, por fim, reafirmamos nossa promessa de que quem partisse primeiro buscaria de alguma forma se comunicar com o outro.
No dia seguinte, segundos antes do acidente, Lucio tentou falar comigo ao telefone. Queria me dizer que estava mal. Não deu tempo. Sobrou apenas sua voz no meu celular.
Foram sete anos de convivência, compartilhamos momentos alegres e tristes. Fomos cúmplices em todas as situações.
Como sempre digo, parafraseando Fernando Pessoa: "morrer é apenas não ser visto. Morrer é a curva da estrada". O que é belo e marcante não morre, transforma-se em outra beleza.
Lúcio fez primeiro do que eu a travessia do Aiye para o Orun, e embora a distância, sei que ele em breve, estará lá no Orun liderando a organização de novas estratégias que venham a contribuir para que nos aqui do Aiye sejamos mais humanos (as) e solidários (as). Mesmo porque a distância não existe quando o amor está no íntimo da alma.
Neide Aparecida Fonseca é diretora da Contraf-CUT