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Como o dinheiro público some nos labirintos bancários

Ao anunciar a liberação de R$ 1,2 trilhão pelo Banco Central (BC) para as instituições financeiras, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que os recursos estão “empoçados no sistema financeiro”. Segundo ele, o governo está trabalhando para que o dinheiro chegue diretamente a quem precisa: famílias e empresas. “Começamos agora a dar dinheiro na veia, direto para as empresas”, afirmou.

O dinheiro, no caso, são os R$ 40 bilhões liberados por Medida Provisória (MP), no período de dois meses, a empresas com faturamento anual entre R$ 360 mil e R$ 10 milhões. Este crédito, com taxa de 3,75% ao ano, servirá para o financiamento da folha de pagamentos das empresas.

Desse total, R$ 34 bilhões (85%) são bancados pelo Tesouro Nacional. Para as instituições financeiras, o risco da operação se limita a R$ 6 bilhões (15%). O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é o responsável por repassar os recursos às instituições financeiras.

Os bancos também contam com o chamado compulsório, que passa de R$ 135 bilhões, liberado pelo BC, e corresponde à parte dos recursos dos clientes. Com ele, o BC controla a quantidade de dinheiro em circulação na economia e forma “colchões de liquidez” para momentos de necessidade de recursos pelos bancos.

Não se sabe ainda como esse dinheiro de fato chegará às empresas e às famílias. O próprio presidente do BC, Roberto Campos Neto, disse que os bancos no Brasil estão “com medo” de conceder crédito, um risco alto diante dos impactos da pandemia do novo coronavírus, a Covid-19, sobre a economia.

Operações em transparência

Como se vê, são operações sem transparência, típicas do sistema financeiro. Enquanto tudo isso acontece, com o Estado impotente diante do poderio dos bancos, a agência de notícias Bloomberg informa que, com a turbulência nos mercados globais, os maiores bancos brasileiros voltaram às graças dos consultores financeiros, verdadeiros agentes do rentismo.

O Goldman Sachs, segundo a Bloomberg, recomenda a compra de papéis do Itaú Unibanco e Banco Bradesco, enquanto o Bank of America adicionou o Itaú ao portfólio recomendado. Na semana passada, o banco suíço de investimento UBS também elevou a recomendação das ações do Itaú para compra.

Agora é a hora de comprar bancos, dizem os tais analistas, como Tim Love, diretor de ações de mercados emergentes da GAM Investments, de Londres, de acordo com a Bloomberg. Os grandes bancos brasileiros “são conhecidos por serem capazes de manter margens e dar lucro em qualquer ambiente”, acrescentou.

Projeção de lucro

Essa recomendação se deve à capitalização das maiores instituições financeiras do país – inclusive o Banco do Brasil –, que devem enfrentar a crise melhor do que outras empresas. Ou seja: as reservas garantidas pela liquidez do BC cobrem eventuais riscos de crédito dos tomadores.

A Bloomberg prossegue dizendo que bancos brasileiros também contam com anos de experiência em todos os tipos de crises. E avançam no mercado de crédito porque conseguem a capitalização que as chamadas fintech – união das palavras financeira com tecnologia – não tem. Na crise, as instituições consolidadas na praça levam vantagem.

Segundo o Goldman Sachs, citado pela Bloomberg, a projeção de lucro líquido para bancos brasileiros em 2020, diante da estimativa de retração de 3,4% do Produto Interno Bruto (PIB) neste ano, é de 12%. O presidente do Itaú, Candido Bracher, deu uma pista para essa projeção – clientes de menor porte querem alternativas de investimento menos arriscadas. “Estamos vendo um aumento dos depósitos bancários, pois as pessoas buscam reduzir o nível de risco das carteiras”, explicou.

Delação premiada

Como o dinheiro público percorre esse circuito é um mistério. O sistema bancário brasileiro tem histórico de se utilizar de recursos do Estado para conservar e ampliar fortunas num país em que a maioria da população paga um alto preço nas crises econômicas. São pessoas que entregam seu dinheiro apenas a instituições bancárias muito bem enfronhadas nas malandragens do mundo financeiro.

Um caso emblemático é o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), que despejou pelo menos R$ 100 bilhões (em valores corrigidos) nos cofres dos bancos. Outro é a porta aberta para a evasão de divisas e lavagem de dinheiro, que ficou ainda mais exposta na Operação Lava jato, sem que nenhuma medida fosse proposta pela turma liderada pelo ex-juiz e atual ministro da Justiça, Sérgio Moro.

Pelo contrário; nesse processo, surgiram casos de envolvimentos de integrantes da chamada “República de Curitiba” em operações obscuras. Foi o caso da autorização de Moro, em 2014, do uso de R$ 1 milhão para supostas compra e instalação de um sistema de câmeras de vigilância e de alarme para unidades da Polícia Federal (PF) no Paraná, dinheiro do doleiro Helio Renato Laniado, liberado em delação premiada.

Laniado atuava para bancos e grandes empresas no escândalo do Banestado, uma espécie de laboratório das operações suspeitas da turma de Moro. Na época, segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo, com a prisão decretada ele fugiu para Israel. De volta ao Brasil, fez um acordo de delação premiada, contou detalhes do esquema e foi posto em liberdade.

Laniado havia sido detido em Praga, capital da República Checa, segundo a Folha de S. Paulo. Conhecido no eixo Rio-São Paulo como o doleiro de celebridades, ele sumiu assim que Moro ordenou a sua prisão. Dizia-se que somente o “doleiro fashion” retirou do Brasil algo como US$ 1 bilhão utilizando as contas CC5 – criadas pela carta circular nº 5 do BC para regulamentar contas em moeda nacional no exterior – e que ele teria em sua lista de clientes o suficiente para abalar a República.

Moro ficou encarregado de acompanhar processos relacionados ao maior caso de evasão de divisas já ocorrido no país, entre 1995 e 1998, principalmente a partir da agência Foz do Iguaçu do Banco do Estado do Paraná, o Banestado. A tarefa surgiu quando o Conselho da Justiça Federal criou varas especiais para julgar crimes financeiros e de lavagem de dinheiro.

Caso de Josef Mengele

Estima-se que mais de US$ 24 bilhões saíram do país, com visíveis ramificações nos escândalos apurados por CPIs no Congresso Nacional. No período em que Moro esteve envolvido na investigação, só entre pessoas físicas foram mais de 1.800 casos; cerca de 2.000 foram pessoas jurídicas. Isso entre as operações identificadas; o número real deve ser muito maior.

Laniado foi liberado após permanecer preso por 420 dias. Ele saiu da custódia da PF em Curitiba após assinar o acordo de delação premiada, pelo qual se comprometeu a revelar como funcionavam os seus negócios e quem eram seus maiores clientes, segundo a Folha de S. Paulo. Não consta que cumpriu o acordo.

Laniado foi preso quando desembarcava no aeroporto de Praga em 16 de agosto de 2005 de um voo vindo de Israel, segundo noticiou a Folha de S. Paulo. Ele fugira para Israel, onde havia obtido a cidadania israelense. Foi o serviço secreto daquele país, o Mossad, que informou à Interpol que Laniado estava no avião, segundo dois delegados da PF.

Não se sabe bem por que o Mossad dedurou Laniado – um dos delegados levantou a hipótese de que poderia ter sido gratidão pelo esforço da PF brasileira em esclarecer o caso de Josef Mengele, o carrasco nazista cuja ossada foi descoberta em 1985 e posteriormente identificada, segundo a Folha de S. Paulo. À época, Moro não quis comentar o assunto, alegando que o processo e a decisão de liberar Laniado estavam sob segredo de Justiça.

Remessas monetárias

Na mesma operação, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, que ficaria famoso como um feroz perseguidor político do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Operação Lava Jato, segundo a revista IstoÉ casado com uma ex-funcionária do Banestado, tentou impedir a quebra de sigilo de contas suspeitas nos Estados Unidos.

Segundo a revista, em 23 de agosto de 2003 uma comissão de autoridades brasileiras embarcou para um périplo por cidades americanas. A missão era verificar in loco investigações feitas pelos procuradores daquele país, que poderiam ser ampliadas nos casos de remessas monetárias ilegais e lavagem de dinheiro feitas por brasileiros.

A matéria informa que estavam na turma os senadores Antero Paes de Barros (PSDB-MT) e Magno Malta (PL-ES), e os deputados Doutor Hélio (PDT-SP) e José Mentor (PT-SP) – todos da CPI do Banestado –, dois procuradores da República, uma delegada, um perito da PF e consultores da Câmara dos Deputados.

A viagem seria um sucesso, prossegue a revista, mas o trem quase descarrilou por causa de uma disputa insólita, cujos motivos até então ocultos se revelaram, no mínimo, de má-fé. “É que entre os procuradores estava Carlos Fernando dos Santos Lima. Santos Lima, quando servia em Curitiba, foi quem recebeu e manteve engavetado, desde 1998, o dossiê detalhadíssimo sobre o caso Banestado e uma lista de 107 pessoas que figuram na queixa-crime sobre remessa de dólares via agência em Nova York”, diz o texto.

Quebra de sigilo

A revista diz ainda que no episódio houve aquilo que em termos jurídicos se chama de “instituto da suspeição”, já que o procurador era parte interessada no caso. “Sua esposa, Vera Lúcia dos Santos Lima, trabalhava no Departamento de Abertura de Contas da filial do Banestado, em Foz do Iguaçu”, afirmou.

Santos Lima fez um tour de force para que a documentação da quebra de sigilo de várias contas, realizada pelo escritório da Procuradoria Distrital de Manhattan, também não viesse à luz, prossegue. Os promotores norte-americanos driblaram Santos e Lima e conseguiram enviar os documentos da quebra de sigilo para a filial do Banco Itaú em Nova York – instituição que comprou o Banestado na privatização, herdando o imbróglio – e o banco daria tudo aos senadores e procuradores.

A IstoÉ diz que recebeu informações de funcionários do Itaú de que houve nova investida de Santos Lima para que os membros da CPI não recebessem o que esperavam. Mas o resultado da investigação parou nos meandros da burocracia da Justiça. Assim como o dossiê que Santos Lima recebeu de sua esposa em 1998.

Segundo a revista, em 17 de setembro daquele ano ele tomou o depoimento de Heraldo Ferreira – ex-gerente de câmbio da agência do banco em Foz do Iguaçu –, em que fazia denúncias sobre as atividades da instituição financeira. O caso Banestado saiu da gaveta do procurador apenas em 21 de março de 2003, quando se tornou público.

Escândalo da Alston

Outro caso de bancos envolvidos em corrupção que passou pelo pessoal da Operação Lava Jato é o de Luis Filipe Malhão e Souza, que confessou ter ajudado a trazer da Suíça para o Brasil pouco mais de US$ 500 mil da Alstom, multinacional francesa que atua na área de infraestrutura de energia e transporte. “A maior parte dos negócios era ligada a bancos e corretoras. Quem me pedia para fazer a operação era o gerente do banco ou corretora”, afirmou ele ao jornal Folha de S. Paulo.

O escândalo da Alston ganhou pouco destaque na mídia, mas atingiu em cheio a estrutura do PSDB no estado de S. Paulo, em especial a Companhia do Metropolitano de São Paulo, o Metrô. As operações, feitas em 1998, chegaram a cerca de US$ 620 milhões em pouco mais de uma década (dos anos 1990 a 2003), segundo a Folha de S. Paulo.

Malhão e Souza também foi parar nas mãos de Moro quando ele trabalhava numa empresa de engenharia e foi condenado a cinco anos e nove meses de prisão pelo então juiz, em regime semiaberto, em agosto de 2009. Segundo a Folha de S. Paulo, o processo correu em segredo de Justiça para que houvesse delação premiada. É mais um caso de desfecho inconcluso, tanto para supostos corruptos quanto para corruptores.

Outro caso inconcluso envolve a ordem de Moro, em 2010, para que fosse instaurado 111 inquéritos para investigar suspeita de remessa ilegal de US$ 2,2 bilhões para uma agência do Israel Discount Bank, em Nova York, entre 2000 e 2005. O valor foi apurado pela promotoria de Nova York numa investigação sobre lavagem de dinheiro em decorrência dos casos do Banestado, Merchants Bank e Beacon Hill, todos usados por doleiros brasileiros.

O caso correu sob segredo de Justiça e envolvia grandes empresários, donos de joalherias e importadores, segundo a Folha de S. Paulo. “Não sei por que esse caso provoca tanto barulho. É um desdobramento a mais de investigação sobre remessas aparentemente ilegais”, disse a delegada Érika Marena, que também ficaria famosa na Operação Lava Jato, especialmente no caso do suicídio do ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier, falsamente acusado de corrupção.

“Caixa dois” de FHC

Os bancos também estiveram envolvidos em casos de “caixa dois” de campanha, de maneira mais explícita desde as eleições de 1994. Assim como no caso de um documento que circulou na Petrobras falando do assunto, além de delações que tocaram no problema, a Operação Lava Jato ignorou a escandalosa confissão do ex-senador e ex-banqueiro José Eduardo de Andrade Vieira.

Em entrevista à Folha de S. Paulo ele disse, de forma irônica, que não se lembrava de uma reunião em que teria acertado a liberação de R$ 5 milhões a um “caixa dois” para cobrir despesas da primeira candidatura presidencial de Fernando Henrique Cardoso (FHC). “Eu não me lembro. Ando tão esquecido”, pilheriou.

O ex-senador Antonio Carlos Magalhães, do então PFL, disse ter testemunhado a reunião. Dela teriam participado o ex-assessor de FHC, Eduardo Jorge, “e mais cinco ou seis pessoas, um de cada partido”. Uma planilha eletrônica mostra que pelo menos R$ 8 milhões deixaram de ser declarados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na reeleição, em 1998, FHC recebeu, no mínimo, R$ 10,120 milhões em “caixa dois”.

História mal contada

No caso do Proer, passados mais de 20 anos desde o fim dos repasses, algumas instituições ainda devem R$ 28 bilhões aos cofres públicos. De acordo com dados fornecidos pelo BC à Câmara dos Deputados, atendendo a pedido de informação do deputado federal Gustavo Fruet (PDT-PR), a dívida atual se concentra em duas instituições: Banco Nacional e Banco Econômico.

O primeiro ainda tem uma dívida de R$ 20,6 bilhões (corrigida com base em setembro de 2019). O segundo deve R$ 7,3 bilhões. Há ainda um terceiro devedor, o Banco Crefisul, mas o valor é bem inferior, R$ 26 milhões.

Gustavo Fruet presidiu a CPI do Proer e, segundo o deputado, o valor da dívida corresponde ao que se prevê de economia com a “reforma” administrativa em gestação no governo Bolosnaro, e não há informação segura de que o dinheiro será recuperado.

“Se os bancos quebraram, por que teria que ter intervenção? Se uma empresa qualquer quebra, por exemplo, não tem esse socorro. Fala-se na crise sistêmica do setor bancário na época, mas para mim sempre vai ficar uma história mal contada”, afirma.

osvaldo bertolino c0019 Osvaldo Bertolino é jornalista e historiador.

Texto publicado originalmente no Portal Vermelho.

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