Transformação do capitalismo
Os termos do debate sobre a crise do capitalismo global correm o sério risco de ficar restritos cada vez mais às superficialidades dos entendimentos de curto prazo, que no máximo massageiam a ponta do iceberg.
Natural, quando a capacidade de
produzir conhecimento encontra-se cada vez mais (i) fragmentada, no caso
das ciências, pelas especializações estimuladas pela visão neoliberal,
(ii) enfraquecida pela orientação competitiva e produtivista em vigor
nas universidades e (iii) enviesada pela lógica da comunicação contida
de twitters, facebooks, e-mails, blogs, etc.
Na mesma direção, o exercício do
monopólio da mídia aprofunda-se na arte de confundir, o que ajuda mais o
processo em curso de alienação. A escassez dos debates mais
aprofundados sobre a mais grave crise do século impede que partidos
políticos, sindicatos e o próprio movimento social identifiquem nesse
acontecimento de ordem global a grande oportunidade para que a história
seja escrita de outra forma.
Isso porque a crise não resulta de um
corpo estranho ao modo de produção capitalista. Pelo contrário,
compreende justamente as situações específicas em que as condições de
sua reprodução encontram-se esgotadas, enquanto as novas ainda
permanecem imaturas. A longevidade da manifestação das crises depende
fundamentalmente da capacidade política de superação dos entraves à
reprodução do capital, simultaneamente ao abandono das velhas e
anacrônicas formas de seu funcionamento. Consequentemente, a
incapacidade política de superação da crise no capitalismo pode levar,
inclusive, ao aparecimento de outros modos de organização social e
produção econômica e à transição para eles.
Nesse sentido, os arranjos
político-institucionais se mostram estratégicos para a resolução ou
continuidade das crises numa economia monetária de produção e
distribuição de riqueza. E dependem direta e indiretamente dos
enfrentamentos entre novos e velhos sujeitos e classes sociais. Com essa
perspectiva, o presente artigo procura oferecer pistas para o
entendimento dos elementos novos nas condições de reprodução
capitalista, que, sem sua resolução política, poderão conferir maior
longevidade à manifestação da crise atual. Antes disso, contudo,
ressaltam-se brevemente as especificidades caracterizadoras das crises e
suas transformações no capitalismo.
Especificidades das crises capitalistas
Os últimos dois séculos foram marcados
pela convivência com distintas crises no modo de produção capitalista.
Duas delas, todavia, merecem maior atenção. A primeira, ocorrida entre
1873 e 1896, expressou um conjunto de obstáculos para a consolidação do
capitalismo urbano-industrial diante dos entraves emergentes da velha
sociedade agrária. Destaca-se que, até o início do Século 19, o
capitalismo urbano-industrial encontrava-se centrado na Inglaterra,
enquanto predominavam em praticamente todo o mundo as sociedades
agrárias em seus mais variados graus de funcionamento.
Com o avanço, no Século 19, do ciclo
de industrializações retardatárias em alguns países como Alemanha,
Estados Unidos, França, Rússia, Itália e Japão, tornaram-se claras as
disputas pela hegemonia de novos centros dinâmicos mundiais, não mais e
apenas concentrados na velha Inglaterra. As duas violentas disputas
mundiais, expressas pelas grandes guerras de 1914 e de 1939,
consolidaram os Estados Unidos como centro dinâmico capitalista, ainda
que em crescente tensão com o bloco de países de economias centralmente
planejadas, liderado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Toda essa transição geopolítica no
capitalismo mundial foi acompanhada pelo aparecimento e pela
consolidação de novos sujeitos sociais em âmbito nacional, como no caso
das classes trabalhadoras e burguesas. A estruturação de inovadoras
instituições de representação dos interesses desses novos sujeitos pelas
mãos de sindicatos e associações patronais e laborais e partidos
políticos consagrou o regime democrático formal como arena da resolução
de conflitos capaz de oferecer possibilidades menos desiguais de
produção e repartição da riqueza. A combinação explícita ou implícita
dos entendimentos entre classes trabalhadoras e burguesas permitiu
superar entraves impostos pelas condições de reprodução capitalista
envelhecida pelo velho agrarismo.
Mas isso, todavia, somente se tornou
mais evidente a partir da resolução dos obstáculos revelados pela grande
crise de 1929. De um lado, o abandono das ultrapassadas formas de
funcionamento do Estado mínimo liberal, que permitiu a constituição de
um novo Estado ampliado em suas funções e fortalecido pela regulação da
competição capitalista. Com isso, o excedente econômico crescentemente
multiplicado passou, em parte, a retornar a seus geradores originais, os
trabalhadores. Estes, por sua vez, conquistaram, entre vários aspectos,
a liberação do tempo de trabalho ao qual se encontravam prisioneiros.
Assim, ganhou importância a libertação do trabalho heterônomo pela
educação, nas faixas etárias mais precoces (crianças, adolescentes e
jovens), e pelos esquemas de aposentadoria e pensão, nos estratos
adoentados e envelhecidos; bem como a redução da jornada de trabalho
(férias, feriados e tempo de 48 horas semanais).
De outro lado, houve a fundamentação
do padrão regulatório da competição e dominação intercapitalista em
âmbito nacional e supranacional. O avanço das grandes empresas
multinacionais e o caráter cada vez mais imperialista de manifestação do
desenvolvimento capitalista no mundo exigiram o restabelecimento de
acordos entre as principais nações. Nesse momento, os Estados Unidos
assumiam de fato o centro econômico dinâmico do mundo, com moeda de
curso internacional (padrão monetário ouro-dólar), forças armadas
predominantes e complexo produtivo e tecnológico de grande dimensão.
A consagração do sistema das Nações
Unidas permitiu o estabelecimento de uma arena política reconhecida por
todos os atores na definição compartilhada de soluções que atendessem
aos compromissos ou às intervenções multinacionais em relação aos
conflitos armados, assim como a regulação econômica (financiamento e
moeda internacional) e comercial (liberação de fluxos financeiros e de
bens e serviços interpaíses). Assim, por quase três décadas a partir do
segundo pós-guerra, a trajetória de dinamismo capitalista foi
surpreendentemente alta e associada aos anos de ouro, com a profusão da
norma de produção e consumo do american way of life.
Em plena Guerra Fria (1947-1991),
alguns países periféricos conseguiram fazer avançar modelos distintos de
constituição da sociedade urbano-industrial. Na América Latina, a
experiência da industrialização tardia se deu por meio da associação
subordinada do capital estatal e da burguesia nacional ao das grandes
empresas multinacionais. A internalização da industrialização implicou
modernização capitalista inegável em meio à maior dependência nacional
ao capital internacional. Em alguns países asiáticos, a experiência de
industrialização seguiu com maior apoio ao nascimento e fortalecimento
de grandes empresas nacionais, contendo articulação entre capitais
estatais e da burguesia nacional.
Desde o começo da década de 1970,
entretanto, sinais de esgotamento do paradigma da sociedade
urbano-industrial passaram a ser observados. Inicialmente, a
incapacidade de os Estados Unidos manterem intacta sua moeda de curso
internacional, o que ficou claro com as medidas de abandono do padrão
ouro-dólar. Também a regulação supranacional da competição
intercapitalista sofreu abalos, com a crescente desregulação do sistema
financeiro diante da crescente liquidez internacional gerada pelo
deslocamento das grandes empresas multinacionais, novos enriquecimentos
de países exportadores de petróleo e dos fluxos financeiros provenientes
de atividades ilegais (tráfico de armas, pessoas, corrupção, drogas,
entre outros).
Ademais, o enfraquecimento relativo
dos Estados Unidos em relação aos milagres econômicos da Alemanha e do
Japão passou a indicar o aparecimento de um novo campo da política
internacional para a disputa da sucessão norte-americana na hegemonia
mundial. A resposta não tardou. A substituição dos pressupostos
econômicos e monetários keynesianos pelo receituário neoliberal abriu
novas oportunidades para o soerguimento repentino norte-americano em
meio às crescentes fragilidades dos alemães, expostas pela unificação
das duas Alemanhas, com o fim da Guerra Fria, e dos japoneses, que
amargaram mais de uma década de crise imobiliária, o que antecipou
rapidamente a decadência nipônica.
O destampar do neoliberalismo
fortaleceu o coração financeiro dos Estados Unidos com o enriquecimento
impressionante do capital fictício. A acumulação capitalista por meio da
expansão financeira de direitos de acesso à riqueza foi facilitada pela
revolução tecnológica, especialmente nas áreas de informação e
comunicação. Mas isso foi tornando gradualmente a economia
norte-americana oca, pelo esvaziamento de seu sistema produtivo e o
engrandecimento do seu castelo de cartas (dialética da geração de
direitos de riqueza imaterial sem a equivalência da riqueza material).
Outra característica marcante da
liderança neoliberal no fim do Século 20 foi o aprofundamento do
movimento de concentração e centralização do capital, convergindo cada
vez mais para o engrandecimento das corporações transnacionais. As
reformulações que apequenaram o papel do Estado, orientadas pela
cartilha do Consenso de Washington e difundidas pelo sistema das Nações
Unidas (Banco Mundial e FMI) e pelas representações nacionais vassalas
(mídia, academia e política), foram vitais para o fortalecimento do
poder privado sem comparação anterior.
Mas a manifestação da crise em 2008
terminou por enunciar sua importante especificidade histórica. Pela
primeira vez se observa uma crise efetivamente de dimensão global, com
todos os países submetidos à lógica do capital. Nas grandes crises de
1873 e de 1929, o capitalismo não se apresentava ainda global, pois
havia a presença de partes do planeta submetidas à condição de colônia e
às experiências do socialismo desde 1917.
Além disso, a crise atual revela-se
sistêmica perante a gravidade que resulta da insustentabilidade
ambiental, da fome e da pobreza mundiais, da ignorância e insalubridade
populacional globais. Não se trata, portanto, de uma crise de natureza
estritamente econômica, pois é muito mais do que isso, especialmente
quando se considera o curso da revolução tecnológica e do reaparecimento
de novas centralidades dinâmicas globais. Até pouco tempo seria
inimaginável acreditar que os Estados Unidos pudessem depender das
decisões do Partido Comunista chinês ou que países como Itália e
Espanha, para não dizer a União Europeia, recorressem à Índia e ao
Brasil para evitar o colapso de suas finanças públicas (uso das reservas
soberanas na aquisição dos títulos do endividamento público).
Crise como condição de transformação
O mundo continuará a conviver com a
crise atual por tanto tempo quanto depender o processo de maturação do
novo, em meio ao esgotamento das velhas condições de reprodução
capitalista. Três questões de novo tipo encerram a complexa engrenagem
capitalista, a saber: (i) a resolução da consolidação do novo centro
dinâmico global; (ii) a conformação de outra relação do Estado diante do
avanço do processo de hipermonopolização do capital; e (iii) a
regulação do novo paradigma produtivo assentado na expansão do trabalho
imaterial.
Na perspectiva histórica, a emergência
de novos centros dinâmicos não constitui fato inédito. A passagem do
centro mundial asiático para a Inglaterra na segunda metade do Século 18
e a ascensão norte-americana no final do Século 19 não se deram de
forma pacífica. Tudo foi acompanhado por importantes conflitos armados.
No caso atual, quando a crise global deixa claro o conjunto de sinais de
decadência dos Estados Unidos em meio à ascensão asiática, fica a
pergunta: como será a acomodação dos países desenvolvidos perante o
reposicionamento de nações que até então eram somente periféricas
(China, Índia e Brasil)? A ausência de mecanismos de regulação global
que permitam expressar essa nova realidade, como moeda de curso
internacional, mantém ativo o desequilíbrio entre nações sem grandes
complexos militares e tecnológicos.
Uma nova governança mundial seria
necessária, pois o atual vazio do sistema das Nações Unidas parece
inconteste. O G20 ganhou expressão recente e importante, mas não tem
institucionalidade e legitimidade requerida para colocar em prática suas
decisões. É uma excrescência a permanência nos dias de hoje dos
chamados países paraísos fiscais. O G20 já chamou a atenção para isso,
mas quais foram as ações adotadas para a resolução do problema?
Da mesma forma, a força das
corporações transnacionais a dominar cada vez mais qualquer setor de
atividade econômica torna proporcionalmente superior o exercício do
poder soberano pelos Estados nacionais. Não são mais países que têm
empresas, mas empresas que têm países e que se mostram capazes de
financiar partidos e políticos e tornar presidentes, governadores e
prefeitos, muitas vezes, meros caixeiros-viajantes dos interesses dos
grandes grupos privados. Os regimes democráticos distanciam-se da
expressão popular, subvertidos que são cada vez mais pelo poder do
dinheiro e pelos interesses lucrativos do grande capital desviado de
qualquer compromisso com a sustentabilidade do planeta. Como alterar o
padrão econômico insustentável ambientalmente quando são as grandes
corporações transnacionais – não mais de quinhentas no mundo – que
resistem a manter intactos o modo de produção e a distribuição de
riqueza comprometedora dos recursos naturais?
O que se poderia esperar quando cerca
da metade da riqueza do mundo e quatro quintos dos investimentos em
pesquisa e desenvolvimento tecnológico são de responsabilidade das
quinhentas maiores corporações transnacionais? Elas governam o mundo,
pois se tornaram tão grandes que não podem mais nem sequer quebrar. Além
disso, corporações são cada vez mais dependentes da associação com o
Estado nacional, sugando, como carrapatos, parcela crescente do
orçamento público. A alternativa tem sido ampliar o ajuste fiscal,
comprimindo o financiamento do Estado de bem-estar social e ofertando
recursos adicionais aos que “realmente contam” na lógica da crise
global.
Por fim, a transição para o trabalho
imaterial, que faz emergir novas formas de riqueza assentada sobre
exploração jamais vista, embora desconhecida diante do véu de alienação
que cega aqueles que em tese deveriam, pelo menos, vigiá-la, denunciá-la
e lutar contra ela. As jornadas de trabalho são mais intensas e
extensas, pois a presença constante das novas tecnologias de informação e
comunicação permite levar o trabalho heterônomo a qualquer lugar. O
curso do desenvolvimento capitalista apropria-se não somente da força
física do trabalhador, mas cada vez mais de seu coração e mente.
A mão de obra segue plugada no
trabalho quase 24 horas por dia. Se existe mais trabalho, há, em
consequência, mais riqueza, que se concentra e conforma a força dos
novos monopólios globais. Esta trajetória histórica do capitalismo
corrói a força de seu dinamismo, que se tornou restabelecido quando
reformas desconcentradoras da riqueza foram realizadas, especialmente
pela força dos agentes sociais, e instrumentalizadas pelo Estado. Os
atores políticos de uma nova ordem que protagonizariam a reforma do
Estado forte e regulador seguem ainda desconhecidos.