Previdência social: a desoneração irresponsável
As autoridades da área econômica iniciaram o ano
repetindo o antigo mantra a respeito da necessidade de promover reduções
tributárias em nosso País, com o objetivo de impulsionar a retomada do
investimento e do crescimento da economia. Mais uma vez, a desoneração
da folha de pagamentos foi apresentada como uma verdadeira panacéia para
solucionar os problemas associados ao chamado “custo Brasil”. Como e os
supostos “custos elevados” associados à força de trabalho ou essa nossa
estrutura regressiva de impostos fossem empecilho para uma atividade
econômica rentável!
O nosso sistema de previdência social remonta
às inovações constituídas por Getúlio Vargas, ainda na década de 1940.
Apesar das muitas mudanças ocorridas ao longo desse período, a base de
arrecadação de fundos sempre foi a contribuição sobre os salários. As
empresas deveriam recolher o equivalente a 20% sobre a folha de
pagamentos, ao passo que os trabalhadores recolhem 11% sobre seus
vencimentos. É o chamado modelo de “repartição”, onde a geração de
trabalhadores na ativa recolhe os recursos necessários para assegurar o
pagamento de benefícios para a geração dos aposentados e demais
beneficiários (pensionistas, acidentados, entre outros). Ele funciona
como um sistema de solidariedade inter-geracional, em oposição ao
chamado modelo de “capitalização”, onde os trabalhadores constituem um
“bolo de poupança”, do qual pretendem usufruir no momento da sua própria
aposentadoria.
A pressão dos empresários e a submissão do governo
Pode-se
até compreender que os empresários, por meio de suas associações de
classe, pretendam reduzir a incidência de tributos sobre suas
atividades. Faz parte do jogo e eles buscam aumentar seus lucros. Assim,
há décadas pressionam para que o sistema previdenciário seja alterado.
Alguns mais arrojados chegavam mesmo a falar em privatização do modelo,
quando a hegemonia do pensamento neoliberal influenciava a formulação de
política econômica e das políticas públicas pelo mundo afora. Outros,
mais cautelosos, contentavam-se com propostas de redução da carga
tributária voltada para a previdência, sem se preocupar com as
conseqüências que isso provocaria para o futuro do regime, no longo
prazo.
O que é difícil de aceitar é que um governo eleito por um
partido que se diz representante dos trabalhadores caminhe na mesma
direção que os empresários e pratique a mesma política dos governos
anteriores para a matéria. Lula e Dilma, por exemplo, mantiveram a
política de redução sistemática de benefícios, por meio do tão combatido
“fator previdenciário”. A promessa de sua revogação é aguardada pelo
movimento sindical e pelas entidades dos aposentados desde 1° de janeiro
de 2003.
Assim, foi sendo mantida uma falsa interpretação a
respeito de um suposto déficit estrutural do Regime Geral da Previdência
Social (RGPS). As manchetes dos grandes jornais estampavam cifras
bilionárias a respeito de uma previdência que estaria inequivocamente
“quebrada”. No entanto, à medida que as informações e as análises “não
catastrofistas” foram ganhando espaço no debate, percebeu-se aos poucos
que a realidade era bem diversa. O nosso regime previdenciário está, até
o presente momento, muito bem equilibrado. E mais: ele é até mesmo
superavitário. Ou seja, ele arrecada mais recursos de contribuição do
que gasta sob a forma de benefícios.
A Previdência Social está equilibrada
Ora,
Paulo, mas então onde está o problema? De acordo, vamos lá. O
ponto-chave para a compreensão das diferenças entre os números
esgrimados no debate é a composição do universo de contribuintes e
beneficiários de nosso RGPS. E isso tudo remonta à Assembléia Nacional
Constituinte de 1988, quando foi adotada uma decisão que incorporou um
setor que, historicamente, sempre havia estado à margem de nossa
previdência oficial. Trata-se dos trabalhadores rurais e dos camponeses.
Nossa Constituição reconheceu essa profunda injustiça social e tornou
explícito o direito desses setores, uma vez que o acesso à previdência
social deveria ser universal. Nada mais justo e democrático, esse
tratamento isonômico!
No entanto, à medida que os anos foram
passando, os beneficiários do campo foram se aposentando - fenômeno
normal e natural. O detalhe, para efeito de análise do déficit
previdenciário, é que boa parte dessa primeira geração de beneficiários
do campo não havia contribuído ao longo da sua vida laboral, pois o
sistema não previa essa hipótese. Assim, os dados relativos aos
aposentados e pensionistas da previdência rural devem ser analisados à
parte. Eles só recebem os benefícios (despesa) e não contribuíram
(receita). Essa diferença, do ponto de vista contábil, deveria ser
coberta a cada exercício por recursos do Tesouro Nacional a serem
transferidos ao INSS, pois essa foi uma decisão política da Constituinte
- recuperar elementos básicos de cidadania para essa importante parcela
de nossa população. Portanto, não se trata - e isso é importante
ressaltar - de um problema de “ineficiência” ou “desajuste” da estrutura
de nosso modelo previdenciário.
Os números consolidados para o
exercício de 2012 são cristalinos a respeito do equilíbrio do sistema.
Ao longo do ano, o subsistema da previdência dos trabalhadores urbanos
atingiu a cifra de R$ 277 bilhões de receitas e gastou R$ 252 bi com o
pagamento de benefícios. Ou seja, mesmo sem considerar a sonegação e as
cobranças judiciais, apresentou um superávit de R$ 25 bi. Já os dados
relativos aos trabalhadores rurais, como explicado acima, apresentaram
uma receita de R$ 6 bi e uma despesa de R$ 73 bi - totalizando, assim,
um déficit de R$ 67 bi. Assim, o valor deficitário global do conjunto do
RGPS refere-se à inclusão dessa categoria antes marginalizada. Trata-se
de quase 9 milhões de aposentados e pensionistas do campo, que recebem
valores de até 1 salário mínimo em 99% dos casos. Essa massa de renda,
aliás, é uma das grandes impulsionadoras de nossa economia nesse
momento. E mais de 35% desses valores retornam aos cofres públicos sob a
forma de impostos.
Os riscos de se manter a desoneração da folha
Ora,
com um sistema operando assim em equilíbrio não há razão para se
promoverem mudanças desnecessárias. Os riscos são enormes, ainda mais em
se tratando de alterações na fonte de receita previdenciária. O governo
acabou cedendo ao “lobby” empresarial e aceitou desonerar a folha de
pagamento da contribuição previdenciária patronal. Com isso, os 20%
sobre os salários foram substituídos por um novo tributo, a incidir
sobre o faturamento das empresas. As alíquotas dessa nova obrigação
tributária são variáveis de acordo com o setor e não há garantia alguma
de que os valores serão suficientes para assegurar o sistema em
equilíbrio no médio e no longo prazos. Caso fosse esse mesmo o caminho a
trilhar, o processo deveria ser feito com muita mais cautela, com muito
estudo de impactos e, eventualmente, caminhar para uma substituição
paulatina ao longo do tempo. Mas o governo incorporou, de forma até
entusiasmada, a demanda dos representantes do capital como se fosse uma
pauta dele mesmo. E acabou por acelerar o processo de substituição
tributária e foi ampliando, a cada momento, o número de setores
beneficiados. Desde o início do ano, que se fala explicitamente em
generalizar o novo método de arrecadação tributária para a previdência.
Porém,
os relatórios e estudos efetuados até o momento demonstram que a
arrecadação sobre o faturamento não está sendo suficiente para cobrir os
valores que seriam recolhidos, caso houvesse a contribuição sobre a
folha de pagamentos. Isso significa que o RGPS não está sendo municiado
com as receitas necessárias para manter seu equilíbrio no futuro. Em seu
afã de atender às demandas do empresariado, o governo comete o sério
risco de montar uma verdadeira bomba de efeito retardado sobre o modelo
previdenciário. E as conseqüências negativas podem ainda ser
potencializadas, pois há na mesa de negociação uma demanda justa e
histórica para que se acabe com o fator previdenciário. Caso adotada, a
medida deverá provocar revisão - para cima - dos valores de parcela
expressiva dos atuais benefícios. Ou seja, às vésperas de um aumento
provável das despesas, o governo estimula a redução das receitas. Uma
loucura!
É hora de voltar à contribuição sobre os salários
Finalmente,
deve ser acentuada a particularidade do momento econômico e demográfico
em que ingressa o Brasil. A intervenção de variáveis como
envelhecimento da população, redução da taxa de natalidade, aumento da
longevidade e ampliação da formalização do mercado de trabalho, entre
outras, são indícios de que alterações no sistema previdenciário serão
necessárias. Frente a esse tipo de incerteza, do ponto de vista das
despesas futuras com os benefícios, a pior coisa que se pode fazer é
promover uma mudança na forma de arrecadação. Principalmente, quando a
fonte desse pleito são as entidades empresarias, cujo interesse objetivo
se resume apenas a - todos sabemos, não é segredo para ninguém - pagar
menos tributos. Ou alguém tem a ilusão de que os representantes do
capital, subitamente, tenham sido imbuídos de profundo altruísmo e
resolveram, de moto próprio, oferecer sua generosa contribuição para
assegurar o futuro de nossa previdência pública?
O único caminho
seguro é o governo recuar dessa aventura irresponsável e apresentar um
calendário de retorno ao recolhimento da contribuição previdenciária com
base na folha de salários. Assim como a isenção de IPI para veículos
era temporária e teve seu fim recentemente, a desoneração da folha de
pagamentos também precisa acabar rapidamente. Ao invés de ampliar e
generalizar a generosidade, o governo deve reduzir e eliminar os setores
beneficiados pela aventura temerária.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.