Fator previdenciário e desaposentação
José Pinto da Mota Filho
Verifica-se que o fator previdenciário, na forma como é aplicado, nada mais é do que um modo velado de inclusão da idade mínima como requisito para concessão da aposentadoria, de modo a frear as chamadas "aposentadorias precoces", como sendo um dos grandes motivos do "déficit da Previdência", alegado pelo Ministério da Previdência Social.
Previdência Social é sempre tema atual e dois assuntos são pauta constante: fator previdenciário e desaposentação.
O fator previdenciário foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei 9.876/99, que deu nova redação ao artigo 29 da Lei 8.213/91, traduzindo-se em uma fórmula que leva em consideração, na data da aposentadoria, a idade, o tempo de contribuição e a expectativa de sobrevida do segurado.
Contudo, na prática, verifica-se que o fator previdenciário, na forma como é aplicado, nada mais é do que um modo velado de inclusão da idade mínima como requisito para concessão da aposentadoria, de modo a frear as chamadas "aposentadorias precoces", como sendo um dos grandes motivos do "déficit da Previdência", alegado pelo Ministério da Previdência Social.
Importa lembrar que a Proposta de Emenda à Constituição nº 33/96 trazia no seu escopo o fim de acrescer a idade mínima para aposentadoria por tempo de contribuição, não tendo sido aprovada no Congresso Nacional. A referida PEC ficou conhecida, depois de aprovada, como Emenda Constitucional 20/98, sendo a primeira grande reforma da Previdência Social.
Desde 1999, então, todas as aposentadorias por tempo de contribuição vêm sofrendo a incidência do fator previdenciário no seu cálculo, e representando uma diminuição no valor do benefício que, em média, representa 30% do valor do benefício, quando requerido de forma antecipada
Assim, verifica-se que o objetivo maior com a introdução do fator previdenciário é manter os segurados na ativa por mais tempo e estimular as aposentadorias tardias, quando o segurado conta com maior tempo de contribuição e idade e, por conseguinte, menor expectativa de sobrevida, acarretando menor impacto nos cofres públicos. O fator é, na verdade, um limite de idade disfarçado.
Analisando-se o objetivo da inserção do fator previdenciário, principalmente, sob a ótica financeira e atuarial, verifica-se que a intenção era auferir um equilíbrio no sistema previdenciário a longo prazo.
Entretanto, o que vem ocorrendo na prática foge do objetivo inicial. Isso porque, no caso hipotético de um segurado homem contar com 55 anos de idade e 37 anos de contribuição, encontrando-se, portanto, preenchidos os requisitos legais para aposentadoria por tempo de contribuição, e requerer a concessão do benefício hoje, ele perderia aproximadamente 24% no valor do benefício.
Verifica-se, no caso hipotético, que o segurado contava com idade de 55 anos e 37 anos de contribuição, ou seja, mais do que o exigido pela legislação e, mesmo assim, o fator previdenciário veio em prejuízo ao segurado, retirando-lhe em média 1/4 da sua aposentadoria.
Tal situação decorre da metodologia de cálculo do fator previdenciário, que inclui as informações da tábua de mortalidade do IBGE, entidade responsável por coletar os dados relativos à expectativa de sobrevida.
Tal tábua prevê o número de anos que a pessoa ainda viverá quando atingir determinada idade. Temos, assim, que o fator previdenciário aumenta com a idade do segurado e do seu tempo de contribuição e varia na razão inversa da expectativa de sobrevida.
Ainda, as tábuas de expectativa de sobrevida utilizadas no cálculo do fator previdenciário são atualizadas anualmente, sempre no mês de dezembro. Essa atualização vem mostrando o aumento da expectativa de sobrevida da população, o que reflete na redução do fator previdenciário.
Importante destacar que, nos anos de 1998 a 2001, a expectativa de sobrevida variou pouco mais de 1%, não acarretando mudanças substanciais no valor do benefício. Contudo, em 2002, com a introdução de dados obtidos no Censo Demográfico de 2000, a expectativa de vida "aumentou" cerca de 12%, pois as estimavas anteriores estavam subestimadas.
Assim, verifica-se que o fator previdenciário não se mostra fórmula proporcional e justa. Antes, pelo contrário, penaliza, principalmente, aqueles segurados que ingressaram cedo no mercado de trabalho.
Não se pode olvidar, ainda, que o sistema utilizado pelo IBGE não faz diferença entre sexos, quando na prática se sabe que a mulher, na média, tem seu óbito em momento posterior ao homem. Assim, a metodologia, no mínimo, maltrata a lógica em contraposição à tese do equilíbrio atuarial.
Por fim, tal norma é ainda inconstitucional ao nosso ponto de vista, eis que a imposição de idade mínima, feita através da Lei do Fator Previdenciário (nº 9.876/99), caracteriza alteração de norma de ordem pública e constitucional através de lei ordinária, o que é vedado, pois tais normas não podem, sob qualquer hipótese, serem suprimidas por leis infraconstitucionais. As normas constitucionais só podem ser alteradas através de emendas constitucionais, eis que necessário quórum especial de votação.
Assim, entendemos que o fator previdenciário, da forma como está, é absolutamente inconstitucional.
Nada obstante, importa destacar que essa batalha não está perdida, pois mesmo que se divulgue que já houve o julgamento da constitucionalidade da questão quando da apreciação das ADIs nos 2.111 e 2.110, até então, somente foram julgadas improcedentes as decisões liminar e cautelar, não tendo sido apreciado o mérito da questão da inconstitucionalidade do fator previdenciário.
Neste sentido, defendemos o debate da matéria pela via difusa, pois a discussão ainda está viva e cabe aos interessados provocar o debate jurídico necessário para a mudança deste cenário atual que é tão injusto, especialmente para os segurados com salário de contribuição acima de três salários-mínimos.
Ilustrativo o julgado a seguir:
PREVIDENCIÁRIO. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO FATOR PREVIDENCIÁRIO. LITISPENDÊNCIA. ADIs Nos 2.110 E 2.111. AFASTADA. CAUSA DE PEDIR. INCIDENTER TANTUN.
1. O Juízo a quo não poderia declarar a litispendência e, por conseguinte, julgar extinta a ação, sem julgamento de mérito, uma vez que, permanecendo o entendimento que o pedido principal é, nada mais do que uma ação declaratória de inconstitucionalidade, o mesmo, de uma análise objetiva, não possuiria competência para processar e julgar a demanda, já que a mesma é de atribuição exclusiva do Supremo Tribunal Federal.
2. A existência das Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade em curso perante o STF não impedem o controle difuso perante os Tribunais, a não ser que haja decisão expressa nesse sentido, em medida cautelar, o que não veio a ocorrer em relação à discussão acerca da constitucionalidade do fator previdenciário nas ADls nos 2.111 e 2.110.
3. O Sindicato/autor propõe a ação civil pública consistente na defesa dos interesses de seus substituídos, cuja causa de pedir é a declaração de inconstitucionalidade do fator previdenciário, ou seja, do dispositivo legal da Lei 9.876/99, que alterou a redação de dispositivo da Lei 8.213/91, para, em consequência, revisar os benefícios previdenciários dos substituídos, apesar de sua exordial não ter sido elaborada com técnica, tudo leva a esta conclusão.
4. A possibilidade jurídica do pedido de revisão dos benefícios percebidos pelos substituídos, tendo como pedido incindenter tantum a inconstitucionalidade do fator previdenciário, permite o processamento e julgamento pelo Juízo de 1º grau, sendo desnecessária a emenda à inicial.
5. Apelação parcialmente provida para anular a sentença apelada. (TRF-2 – AC 200951018122608, Segunda Turma Especializada, Rel.ª Des.ª Fedl. LILIANE RORIZ, DJe 09.04.12.)
Os pontos de argumentação daqueles que defendem a inconstitucionalidade do fator previdenciário se norteiam no desrespeito à formalidade na tramitação do Projeto elaborado pela Câmara dos Deputados que originou a Lei 9.876/99, haja vista a proposta legislativa ter recebido emendas do Senado sem que houvesse o retorno à Casa iniciadora, como determina a própria Constituição da República, em seu art. 65, parágrafo único (inconstitucionalidade formal). Argumenta-se também a inconstitucionalidade material daquele Projeto, pois como dito, a matéria não poderia ser tratada por lei ordinária.
Há de se destacar, ainda, que um dos princípios norteadores do ramo previdenciário é a regra da contrapartida. Sabidamente, o segurado ao longo de sua vida laborativa tem descontos (segurado empregado, avulso) ou faz suas contribuições de maneira compulsória sobre o valor recebido ou creditado, pelo que, quando de sua aposentação, deve o benefício ter como reflexo o total contribuído e na exata medida da contribuição vertida. Com a aplicação do fator previdenciário, resta impossibilitado o recebimento do benefício de forma a abranger os valores contribuídos, desrespeitando-se o princípio da contrapartida.
Sabe-se que outros princípios são invocados neste caso, como o da solidariedade do sistema, segundo o qual a sanidade do sistema interessa não só à geração presente, como às futuras também. Porém, um cálculo bem realizado, levando em conta os reais índices e valores, traz como consequência a desmistificação do déficit previdenciário, pelo que tal argumento perde força.
Ocorre que o Governo não tem sido cauteloso com a receita previdenciária, praticando irresponsável política de desoneração da folha de pagamentos sem contrapartida sustentável do ponto de vista do financiamento do sistema.
Mesmo que se entendesse possível o argumento, sendo ele um princípio, quando confrontado com outros princípios constitucionais, deve haver a efetivação daquele mais valioso no determinado caso concreto.
Não se pode perder de vista, ademais, que a interpretação das normas deve levar em consideração o fim social a que se destina e, ainda, ter como norte a efetivação da dignidade da pessoa humana, pois ela está inserida já no artigo 1º da Constituição Federal como objetivo fundamental da República, sendo inaceitável ter como válida no mundo jurídico norma que impeça ou deixe de garantir a efetivação da dignidade.
Para verificar o quão nefasta é a incidência do fator previdenciário, pode-se trazer como exemplo a situação de professores do ensino fundamental e médio. Tais pessoas podem requerer sua aposentadoria com 25 anos de profissão quando ela é realizada em sala de aula. Ocorre que o requisito acaba implementado quando o segurado ainda não tem idade avançada, posto o início precoce na atividade. Como o fator previdenciário incidirá obrigatoriamente em tal modalidade de aposentadoria, vários são os exemplos de profissionais que, ao pleitearem o benefício junto ao INSS, após uma vida de dedicação ao ensino, recebem como prêmio uma aposentadoria no valor do salário-mínimo, mesmo apresentando um padrão contributivo superior.
Certamente, não há efetivação de dignidade no exemplo citado. Ressaltamos, apenas, que se deve ter cautela em relação ao fim do fator previdenciário e sua substituição por idade mínima para acesso ao benefício da aposentadoria. Tal medida, se implementada, afetará negativamente os segurados com menor salário de contribuição, os quais serão penalizados pela nova regra, já que dificilmente se aposentam com benefício superior ao salário-mínimo.
Por outro lado, temos o instituto da desaposentação, que guarda bastante relação com a questão da inserção do fator previdenciário no cálculo das aposentadorias.
Isso porque verificamos que os principais fatores desencadeadores da desaposentação são a frustração da expectativa e o baixo valor dos proventos percebidos pelo segurado, em grande escala provocados pela incidência do fator previdenciário no cálculo das aposentadorias; a consequente necessidade de continuidade ou retorno à atividade laboral e, portanto, a incidência da contribuição previdenciária na remuneração auferida em razão do trabalho; a redução da proteção previdenciária ao segurado aposentado, eis que, em razão de já receber aposentadoria, não poder cumular com outros benefícios, mesmo que esteja na ativa, sendo beneficiário somente de salário-família e reabilitação profissional; o fim do abono de permanência para aqueles que retardam a aposentadoria e permanecem no trabalho; o fim do pecúlio, benefício concedido ao segurado aposentado que retornava ao mercado de trabalho e, ao final, recebia de volta todas as contribuições vertidas à Previdência Social em razão de já estar aposentado; a ausência da cultura do brasileiro em planejar a aposentadoria; o aumento da expectativa de vida; as já extintas aposentadorias proporcionais, dentre outros não menos importantes.
A desaposentação, portanto, nada mais é do que a possibilidade de renunciar ao benefício concedido para que o tempo de contribuição vinculado ao ato de concessão possa ser liberado, e somado ao novo tempo de contribuição posterior àquela aposentadoria, permitindo seu cômputo em novo benefício mais vantajoso. Ou seja, caracteriza-se no ato de desfazimento da aposentadoria por vontade do titular desta, para aproveitar o tempo de filiação em contagem para nova aposentadoria mais vantajosa.
Há ainda a possibilidade de renúncia ao benefício existente junto ao Regime Geral de Previdência Social para que o tempo de contribuição possa ser levado por intermédio de certidão adequada ao Regime Próprio, para que lá se cumpram os requisitos necessários à concessão do benefício no regime mais favorável e com valor significativamente melhor.
Desta forma, a desaposentação seria o mecanismo utilizado pelos segurados para obter um benefício mais vantajoso, com uma melhor prestação pecuniária recebida pelo aposentado e com a respectiva contrapartida ao tempo contribuído ao sistema previdenciário.
Tal instituto tem como fundamento principal a dignidade da pessoa humana e visa, mais uma vez, o caráter retributivo do sistema previdenciário. Todavia, sua aplicabilidade vem causando inúmeros questionamentos, tais como o fato de inexistir expressa previsão legal que autorize a desaposentação, bem como a questão de a Autarquia Previdenciária defender a devolução dos valores anteriormente percebidos por ocasião da primeira aposentadoria.
No âmbito jurídico infraconstitucional, o cenário da desaposentação vem sendo positivo, eis que, recentemente, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.334.488-SC (DJe 14.05.13), submetido ao rito dos recursos repetitivos, entendeu que a desaposentação é um direito do segurado e que não precisam ser devolvidos os valores. Mais recentemente, a mesma Seção ainda estabeleceu os parâmetros de como se dará o cálculo da nova aposentadoria.
Contudo, a palavra final acerca da viabilidade jurídica da desaposentação será do Supremo Tribunal Federal, que julgará o Recurso Extraordinário nº 661.256-SC, de relatoria do Ministro Roberto Barroso. O Ministro Marco Aurélio de Mello já proferiu seu voto favorável à desaposentação sem a devolução dos valores. Resta agora aguardar o julgamento.
Por fim, cabe apenas ressaltar que, no âmbito do Poder Legislativo, a desaposentação não está tendo o mesmo desempenho. Isso porque, no dia 9 de outubro último, a Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados rejeitou o Projeto de Lei que permitia a desaposentação, com a justificativa de que, se permitida, ela causaria um aumento de despesas na ordem de R$ 69 bilhões de reais a longo prazo. Registre-se, por oportuno, que, em janeiro de 2008, houve veto presidencial ao Projeto de Lei da Câmara 78, de 2006, que permitia a desaposentação.
Percebe-se, assim, que as duas discussões têm como pano de fundo a implementação do benefício de forma mais favorável ao segurado, como já determina o Enunciado 5 do Conselho de Recursos da Previdência Social, tudo no sentido de trazer autorrealização e autodeterminação ao destinatário do benefício.
Vale destacar, por fim, que recentemente o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordinário 630.501-RS (DJe 26.08.13) e, por seis votos favoráveis, referendou a tese do direito ao melhor benefício pelo segurado da previdência social, dando a ele a opção de escolher, desde que supridos os requisitos à obtenção do benefício, qual o melhor momento para realização do cálculo da renda mensal inicial, o que pode servir como norte para os temas ora tratados.
Por fim, há que se refletir sobre em que medida a decisão do STF acerca do instituto da decadência afetará a solução judicial destes dois temas tão controversos.
Advogado, é consultor legislativa do Senado Federal