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O Fantasma da desindustrialização

Adriano Almeida
Se o entesourador é uma figura cômica, pois, ao retirar o dinheiro de circulação, cai na ilusão do enriquecimento, o capitalista, por outro lado, seria uma figura astuta, pois vislumbrou o enriquecimento, não como forma sólida do tesouro, mas sim como forma líquida do dinheiro em processo. O dinheiro como capital, portanto, não se dissolveria em valores de uso para a fruição do consumo nem assumiria a perdurabilidade ilusória do tesouro, mas adquiriria a perdurabilidade no próprio processo. E mais: “como forma universal da riqueza, o dinheiro só pode fazer um movimento quantitativo; só se preserva, como valor, ao se multiplicar”. Essa nova determinação do dinheiro, é claro, não é produto, para Marx, de uma “simples dialética conceitual”, mas “é o resultado de um largo processo histórico – é a síntese de muitas reviravoltas econômicas”. O esquecimento da gênese histórica do capital impediu à Economia Política Clássica descobrir que o trabalho “na condição de valor de uso é onde se origina, se produz e se multiplica o próprio valor (Grundrisse)”.   

Em vez de se dissolver em valores de uso para fruição do consumo, o dinheiro adquire um caráter produtivo ao pôr em movimento o único valor de uso que, ao mesmo tempo, conserva e multiplica o próprio valor. O capital recebe, portanto, do trabalhador "o trabalho como trabalho vivo, força produtiva, atividade que incrementa a riqueza”. Porém, na medida em que a indústria moderna se desenvolve, “um monstro vivo”, guiado pelo pensamento científico,  toma o lugar produtivo do trabalho, deixando o processo produtivo livre da “subordinação da habilidade direta do tra-balhador”. A máquina, assim, ao tomar o lugar do trabalhador, dá à produção “um caráter científico, reduzindo o trabalho a um simples momento desse processo”. Mas o importante a salientar é que o capital cria um “sistema de exploração geral das propriedades naturais para descobrir novas propriedades úteis das coisas; novas elaborações (artificiais) dos objetos natu-rais; novos valores de uso” com a finalidade de conservar e multiplicar o próprio valor. O uso da ciência natural na produção é pura astúcia do capital, pois ao “converter o conhecimento social geral em força produtiva imediata, em órgãos imediatos da práxis social (Grundrisse)”, ele visa conservar-se e multiplicar-se como valor. 

Mas o que Marx quer dizer, e para os nossos propósitos é essencial, é que a criação da riqueza efetiva no capitalismo desenvolvido depende do uso da ciência e do conhecimento social geral como força produtiva nos proces-sos industriais. Eis um assunto extremamente atual no debate sobre as fragilidades estrutu-rais da indústria brasileira. Na proporção em que os efeitos da crise percam força no país, os desafios para o desenvolvimento industrial irão retornar com mesmo ou maior destaque tal como na época do Plano de Metas de Juscelino K. A indústria, sobretudo a de média e alta tecnologia, continua sendo o motor, por excelência, das inovações e do dinamismo econômico, pois elas são capazes de multiplicar em alto grau a riqueza social e elevar o padrão social dos trabalhadores. 

Para que a indústria brasileira volte a comandar o dinamismo da economia, é preciso que ela se posicione no mercado por meio da busca de assimetrias comeptitivas geradas pela aplicação da ciência na produção, por meio da atividade de P&D (Pesquisa e Desenvolvi-mento). Porém, a recente pesquisa concluída na Unicamp, sob a coordenação do prof. Júlio Sérgio de Almeida, mostra ainda que a indústria no Brasil resiste a imobilizar capital em ativos de longo prazo; isto é, a indústria ainda está presa a herança da época hostil de grande instabilidade dos juros, câmbio e inflação da década de 80 e juros e câmbio da década de 90. A pesquisa ainda concluiu que o crescimento dos lucros a partir do aumento do dinamismo do mercado interno e do externo desde 2002 não serviu de estímulo para a elaboração de estratégias agressivas de inovação tecnológica, mas foram direcionados em grande parte para operações de reestruturação do passivo finan-ceiro. Em vez de se voltar para investimentos que tragam “à luz todos os poderes da ciência e da natureza”, a indústria brasileira ainda insiste em investimentos de retorno rápido, tal como as operações de reestruturação patri-monial que visam o aumento da eficiência do capial já imobilizado.

Quer dizer, a integração competitiva do Brasil apoiada na produção e exportação de commodities de alto conteúdo natural continua bastante viva! Cabe também lembrar que a atual política cambial só faz aprofundar a prática histórica da indústria de adotar estra-tégias flexíveis de curto prazo e de fugir de investimentos necessários para “converter o conhecimento social geral em força produtiva imediata, em órgãos imediatos da práxis social”. A atual política cambial, ao gerar instabilidade e incertezas, lança a estrutura produtiva do país em um processo de especialização produtiva e regressão industrial como mostra de forma contundente os dados do PIA-IBGE: se os investimentos em termos reais no setor de commodities agrícolas e minerais cresceram 277% entre 1997-08, no setor manufatureiro cresceram apenas 30%. Hoje o setor industrial equivale a 22% do PIB, enquanto no início déca-da de 90 equivalia a 45%

Certamente o setor de commodities contém sofisticação tecnológica e atividade de P&D. A Embrapa, p.ex., é referência mundial de pesquisa científica no setor agrícola, mas tal fato exitoso não justifica a especialização da estrutura produtiva brasileira em commodities de alta densidade natural. A experiência da China e da Coréia do Sul é exemplo claro de que indústrias de alta densidade científica e com-prometidas com a aplicação da ciência na produção possuem alta capacidade de expandir a riqueza social. Tanto é assim que a China, p.ex., adquiriu, graças ao seu dinamismo econômico, um grande poder de precificar as própias commodities exportadas pelo Brasil. Ademais, a China também adquiriu uma grande responsabilidade no fato de o quantum de importação de manufaturados no Brasil ter crescido 154% entre 1997-08. 

Certamente a China tem a vantagem cambial na guerra da concorrência com as indústrias brasileiras. Após a crise, o Estado Chinês, ao manter a cotação fixa do yuan em relação ao dólar, deu um poderoso auxílio ao setor manufatureiro exportador chinês. Produ-tos como pneus novos para ônibus e caminhões (-46,5%), equipamentos para refrigeração/ar condicionado (-32,3%), bolsas de matérias têxteis de couro para calçados (-63,3%), óculos de sol (-24,4%), brinquedos com motor elétrico (-44,5%), etc tiveram os preços reduzidos em maior nível que a queda do US$ em relação ao R$ (-21,1%) nos 09 meses de 2010. Se for duradoura esta vantagem cambial da China, a estrutura industrial brasileira poderá ser lançada num processo dramático de especia-lização produtiva em setores de alta competiti-vidade internacional brasileira – leia-se o setor de commodities naturais. 

O câmbio com uma administração equi-librada e sem ranços ideológicos neoliberais é uma poderosa arma de política industrial, pois abre oportunidades para o aprendizado tecno-lógico e o esforço em inovação e pesquisa cientí-fica a partir da exploração do mercado interna-cional. Por isso, é urgente que o Estado brasi-leiro resolva a delicada questão cambial em plena abundância de dólar no mundo e apro-funde as políticas industriais de estímulo à aplicação da ciência na produção. Trata-se de uma questão conjuntural grave (o câmbio) e uma questão estrutural, historicamente articu-lada. O Brasil foi o país que mais cresceu no mundo entre 1930 e 1980, mas desde o desas-tre neoliberal da era FHC, da bolha de valori-zação das commodities inflada pelo tigre chinês e da política de juros ainda conservadora o Brasil tem andado na contramão do desenvolvimento industrial.

Há mais de 150 anos atrás Marx escrevia que no capitalismo industrial alta-mente desenvolvido “o que aparece como pilar fundamental da produção e da riqueza não são nem o trabalho imediato executado pelo homem nem o tempo que este trabalha, mas sim sua força produtiva geral, sua compreensão da natureza e seu domínio sobre ela graças a sua existência como corpo social (Grundrisse)”. Eis o desafio brasileiro: criar densidade de conheci-mento que funcione como força produtiva para multiplicar a riqueza social.


*Adriano Jonas de Almeida é economista, mestre em sociologia e assessor econômico do Sindicato dos Bancários da Bahia.
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