O Fantasma da desindustrialização
Se o entesourador é uma figura cômica, pois, ao retirar o dinheiro de circulação, cai na ilusão do enriquecimento, o capitalista, por outro lado, seria uma figura astuta, pois vislumbrou o enriquecimento, não como forma sólida do tesouro, mas sim como forma líquida do dinheiro em processo. O dinheiro como capital, portanto, não se dissolveria em valores de uso para a fruição do consumo nem assumiria a perdurabilidade ilusória do tesouro, mas adquiriria a perdurabilidade no próprio processo. E mais: “como forma universal da riqueza, o dinheiro só pode fazer um movimento quantitativo; só se preserva, como valor, ao se multiplicar”. Essa nova determinação do dinheiro, é claro, não é produto, para Marx, de uma “simples dialética conceitual”, mas “é o resultado de um largo processo histórico – é a síntese de muitas reviravoltas econômicas”. O esquecimento da gênese histórica do capital impediu à Economia Política Clássica descobrir que o trabalho “na condição de valor de uso é onde se origina, se produz e se multiplica o próprio valor (Grundrisse)”.
Em
vez de se dissolver em valores de uso para fruição do consumo, o
dinheiro adquire um caráter produtivo ao pôr em movimento o único valor
de uso que, ao mesmo tempo, conserva e multiplica o próprio valor. O
capital recebe, portanto, do trabalhador "o trabalho como trabalho vivo,
força produtiva, atividade que incrementa a riqueza”. Porém, na medida
em que a indústria moderna se desenvolve, “um monstro vivo”, guiado pelo
pensamento científico, toma o lugar produtivo do trabalho, deixando o
processo produtivo livre da “subordinação da habilidade direta do
tra-balhador”. A máquina, assim, ao tomar o lugar do trabalhador, dá à
produção “um caráter científico, reduzindo o trabalho a um simples
momento desse processo”. Mas o importante a salientar é que o capital
cria um “sistema de exploração geral das propriedades naturais para
descobrir novas propriedades úteis das coisas; novas elaborações
(artificiais) dos objetos natu-rais; novos valores de uso” com a
finalidade de conservar e multiplicar o próprio valor. O uso da ciência
natural na produção é pura astúcia do capital, pois ao “converter o
conhecimento social geral em força produtiva imediata, em órgãos
imediatos da práxis social (Grundrisse)”, ele visa conservar-se e
multiplicar-se como valor.
Mas
o que Marx quer dizer, e para os nossos propósitos é essencial, é que a
criação da riqueza efetiva no capitalismo desenvolvido depende do uso
da ciência e do conhecimento social geral como força produtiva nos
proces-sos industriais. Eis um assunto extremamente atual no debate
sobre as fragilidades estrutu-rais da indústria brasileira. Na proporção
em que os efeitos da crise percam força no país, os desafios para o
desenvolvimento industrial irão retornar com mesmo ou maior destaque tal
como na época do Plano de Metas de Juscelino K. A indústria, sobretudo a
de média e alta tecnologia, continua sendo o motor, por excelência, das
inovações e do dinamismo econômico, pois elas são capazes de
multiplicar em alto grau a riqueza social e elevar o padrão social dos
trabalhadores.
Para
que a indústria brasileira volte a comandar o dinamismo da economia, é
preciso que ela se posicione no mercado por meio da busca de assimetrias
comeptitivas geradas pela aplicação da ciência na produção, por meio da
atividade de P&D (Pesquisa e Desenvolvi-mento). Porém, a recente
pesquisa concluída na Unicamp, sob a coordenação do prof. Júlio Sérgio
de Almeida, mostra ainda que a indústria no Brasil resiste a imobilizar
capital em ativos de longo prazo; isto é, a indústria ainda está presa a
herança da época hostil de grande instabilidade dos juros, câmbio e
inflação da década de 80 e juros e câmbio da década de 90. A pesquisa
ainda concluiu que o crescimento dos lucros a partir do aumento do
dinamismo do mercado interno e do externo desde 2002 não serviu de
estímulo para a elaboração de estratégias agressivas de inovação
tecnológica, mas foram direcionados em grande parte para operações de
reestruturação do passivo finan-ceiro. Em vez de se voltar para
investimentos que tragam “à luz todos os poderes da ciência e da
natureza”, a indústria brasileira ainda insiste em investimentos de
retorno rápido, tal como as operações de reestruturação patri-monial que
visam o aumento da eficiência do capial já imobilizado.
Quer
dizer, a integração competitiva do Brasil apoiada na produção e
exportação de commodities de alto conteúdo natural continua bastante
viva! Cabe também lembrar que a atual política cambial só faz aprofundar
a prática histórica da indústria de adotar estra-tégias flexíveis de
curto prazo e de fugir de investimentos necessários para “converter o
conhecimento social geral em força produtiva imediata, em órgãos
imediatos da práxis social”. A atual política cambial, ao gerar
instabilidade e incertezas, lança a estrutura produtiva do país em um
processo de especialização produtiva e regressão industrial como mostra
de forma contundente os dados do PIA-IBGE: se os investimentos em termos
reais no setor de commodities agrícolas e minerais cresceram 277% entre
1997-08, no setor manufatureiro cresceram apenas 30%. Hoje o setor
industrial equivale a 22% do PIB, enquanto no início déca-da de 90
equivalia a 45%
Certamente
o setor de commodities contém sofisticação tecnológica e atividade de
P&D. A Embrapa, p.ex., é referência mundial de pesquisa científica
no setor agrícola, mas tal fato exitoso não justifica a especialização
da estrutura produtiva brasileira em commodities de alta densidade
natural. A experiência da China e da Coréia do Sul é exemplo claro de
que indústrias de alta densidade científica e com-prometidas com a
aplicação da ciência na produção possuem alta capacidade de expandir a
riqueza social. Tanto é assim que a China, p.ex., adquiriu, graças ao
seu dinamismo econômico, um grande poder de precificar as própias
commodities exportadas pelo Brasil. Ademais, a China também adquiriu uma
grande responsabilidade no fato de o quantum de importação de
manufaturados no Brasil ter crescido 154% entre 1997-08.
Certamente
a China tem a vantagem cambial na guerra da concorrência com as
indústrias brasileiras. Após a crise, o Estado Chinês, ao manter a
cotação fixa do yuan em relação ao dólar, deu um poderoso auxílio ao
setor manufatureiro exportador chinês. Produ-tos como pneus novos para
ônibus e caminhões (-46,5%), equipamentos para refrigeração/ar
condicionado (-32,3%), bolsas de matérias têxteis de couro para calçados
(-63,3%), óculos de sol (-24,4%), brinquedos com motor elétrico
(-44,5%), etc tiveram os preços reduzidos em maior nível que a queda do
US$ em relação ao R$ (-21,1%) nos 09 meses de 2010. Se for duradoura
esta vantagem cambial da China, a estrutura industrial brasileira poderá
ser lançada num processo dramático de especia-lização produtiva em
setores de alta competiti-vidade internacional brasileira – leia-se o
setor de commodities naturais.
O
câmbio com uma administração equi-librada e sem ranços ideológicos
neoliberais é uma poderosa arma de política industrial, pois abre
oportunidades para o aprendizado tecno-lógico e o esforço em inovação e
pesquisa cientí-fica a partir da exploração do mercado interna-cional.
Por isso, é urgente que o Estado brasi-leiro resolva a delicada questão
cambial em plena abundância de dólar no mundo e apro-funde as políticas
industriais de estímulo à aplicação da ciência na produção. Trata-se de
uma questão conjuntural grave (o câmbio) e uma questão estrutural,
historicamente articu-lada. O Brasil foi o país que mais cresceu no
mundo entre 1930 e 1980, mas desde o desas-tre neoliberal da era FHC, da
bolha de valori-zação das commodities inflada pelo tigre chinês e da
política de juros ainda conservadora o Brasil tem andado na contramão do
desenvolvimento industrial.
Há
mais de 150 anos atrás Marx escrevia que no capitalismo industrial
alta-mente desenvolvido “o que aparece como pilar fundamental da
produção e da riqueza não são nem o trabalho imediato executado pelo
homem nem o tempo que este trabalha, mas sim sua força produtiva geral,
sua compreensão da natureza e seu domínio sobre ela graças a sua
existência como corpo social (Grundrisse)”. Eis o desafio brasileiro:
criar densidade de conheci-mento que funcione como força produtiva para
multiplicar a riqueza social.
*Adriano Jonas de Almeida é economista, mestre em sociologia e assessor econômico do Sindicato dos Bancários da Bahia.