Juros: uma página virada?
Muitos analistas começam a colocar em debate a hipótese
de que estaríamos vivendo, a partir das últimas semanas, uma espécie de
ponto de inflexão no tratamento que a sociedade e o governo
brasileiros vêm oferecendo para a questão da taxa de juros há décadas.
Afinal, uma série de medidas foram anunciadas e adotadas recentemente, o
que parece realmente apontar na direção de mudanças significativas
nesse domínio. Dentre elas, há três elementos que merecem ser
destacados.
As três medidas da mudança
O primeiro
refere-se à reversão de orientação da política monetária de juros altos,
a partir de uma tomada de posição mais firme por parte da Presidenta
Dilma. Desde a reunião de 20 de julho de 2011 do COPOM, a taxa Selic
passou a ser reduzida de forma contínua a cada 45 dias, saindo do então
patamar de 12,5% a.a. para os atuais 9% a.a. E há sinais claros de que a
tendência de queda poderia continuar até o final desse ano.
O
segundo aspecto diz respeito a uma determinação da chefe do governo para
que os bancos oficiais federais rompessem com a prática adotada até
então, de seguir de forma obediente os passos da banca privada no
mercado financeiro. Assim, a partir das últimas semanas, a Caixa
Econômica Federal (CEF) e depois o Banco do Brasil (BB) iniciaram uma
política de redução de seus “spreads” nas diversas modalidades de
crédito e parecem estar baixando de fato as taxas cobradas em suas
operações na ponta, junto a indivíduos, famílias e empresas.
Em
terceiro lugar, Dilma resolveu encarar uma difícil – mas necessária -
opção política por alterar as regras da caderneta de poupança.
Conjuntura semelhante foi apresentada ao Presidente Lula em 2009 e 2010,
mas ele preferiu empurrar a coisa com a barriga e a discussão não
avançou à época. Isso porque as condições atuais de remuneração da
caderneta de poupança, que foram pensadas para a época de inflação e
juros elevados, operam agora como empecilho para redução da taxa de
juros a níveis inferiores a 9% a.a.
A postura mais forte de Dilma
Além
disso, de forma mais ampla, pode-se sentir uma mudança de postura de
Dilma na sua relação com o próprio sistema financeiro. Ao contrário de
Lula, que optou por manter à frente do BC um legítimo representante dos
interesses da banca privada internacional com liberdade total de ação,
ela parece ter se decidido por um acompanhamento mais detalhado da
política monetária e das ocorrências no sistema financeiro de forma
geral. Assim, por exemplo, têm sido as suas declarações a respeito do
comportamento dos bancos privados, em sua relutância para baixar as
taxas de juros. Às vésperas da comemoração do dia 1° de maio, ela fez a
seguinte intervenção carregada de significado:
"É inadmissível
que o Brasil, que tem um dos sistemas financeiros mais sólidos e
lucrativos, continue com um dos juros mais altos do mundo" (...) "A
economia brasileira só será plenamente competitiva quando nossas taxas
de juros, seja para o produtor seja para o consumidor, se igualarem às
taxas praticadas no mercado internacional" (...) "Os bancos não podem
continuar cobrando os mesmos juros para empresas e para o consumidor,
enquanto a taxa básica Selic cai, a economia se mantém estável e a
maioria esmagadora dos brasileiros honra com presteza e honestidade os
seus compromissos" (...) "O setor financeiro, portanto, não tem como
explicar essa lógica perversa aos brasileiros".
Portanto, um
recado bem direto e ousado, substancialmente diferente da conduta de
Lula, a exemplo da famosa declaração de abril de 2005. À época, ele se
saiu com um desastrado pronunciamento, quando perguntado a respeito das
altas taxas de juros praticadas no País, fato criticado até mesmo por
seu vice, José de Alencar. Descartando qualquer possibilidade de ação do
governo nesse domínio, o ex-presidente terminou por responsabilizar
apenas o povo por aquela situação. Disse:
"Ele [o brasileiro]
não levanta o traseiro do banco, ou da cadeira, para buscar um banco
mais barato. Reclama toda noite dos juros pagos e no dia seguinte não
faz nada para mudar"
No entanto, apesar das evidências
colaborarem para as análises mais otimistas, é necessário termos
bastante cautela na projeção de cenários futuros. Em primeiro lugar pelo
fato de que há muito pouco tempo, a própria taxa Selic chegou a
permanecer em nível até mais baixo que o atual. Como não temos uma boa
memória para esse tipo de registro, pouco se fala ou se noticia que,
entre 23 de julho de 2009 e 28 de abril de 2010, nossa taxa oficial foi
de 8,75%. Ou seja, durante 9 meses viveu-se uma situação semelhante à
atual, com possibilidades objetivas para romper com a política monetária
restritiva. Mas a opção de Lula foi outra e a taxa voltou a subir logo
depois. No final do mandato, ele terminou passando a faixa presidencial
com a Selic no nível de 10,75%.
As dificuldades para virar a página
Esse
alerta é apenas para que não nos esqueçamos de que a sociedade
brasileira opera como uma espécie de dependente químico de juros
elevados. Isso significa que não apenas os grandes operadores do sistema
financeiro contribuem e se interessam por manter juros em patamares
altos. Os demais setores e classes sociais também terminam por exibir um
comportamento dependente desse verdadeiro vício nacional. As classes
populares e de menor renda sempre acreditaram na instituição pública da
caderneta de poupança, apesar de todas as perdas e tungadas ocorridas ao
longo dos tempos. Assim, mexer nas regras é sempre um risco político –
ainda que as perdas ocorressem sem alteração oficial das regras e sim
por meio da manipulação dos índices oficiais de remuneração. Os
trabalhadores e as instituições do movimento sindical são igualmente
beneficiados pelos rendimentos obtidos por seus fundos de pensão em suas
aplicações financeiras. Amplos setores da classe média também se
acomodaram face aos ganhos proporcionados pelos fundos de investimento e
demais alternativas oferecidas pelas instituições financeiras.
Ou
seja, esse quadro todo nos sugere uma formação social em que a taxa de
juros elevada é uma característica integrante e importante. O dado
positivo para a perspectiva mudancista é que as pesquisas de opinião
apontam a simpatia da população para com medidas que reduzam as taxas.
Esse é o ponto de partida para uma trajetória de maior fôlego e mais
longa, que possa significar efetivamente uma histórica virada de página
nesse quesito dos juros.
E aí todos teremos que nos acomodar à
nova situação e não ficar achando que 2% de remuneração anual real
(descontada a inflação do período) seja muito pouco em termos de
rentabilidade, como já começam a avançar alguns “especialistas” do
mercado financeiro. Na tentativa de retirar credibilidade ao movimento
de baixa dos juros, lança-se mão de todo o tipo de recurso: do
terrorismo à baixaria.
A resistência dos bancos
Parece
claro que haverá muitas dificuldades em manter essa conduta pela
redução dos juros de forma definitiva. Os grandes prejudicados já
começam a armar sua estratégia para inviabilizar a intenção de Dilma.
Desde o primeiro momento, percebemos que os meios de comunicação
repercutem e amplificam a pressão dos bancos e demais agentes do sistema
financeiro, que não ficarão passivos frente às ações do governo. Que
ninguém se iluda: eles tentarão resistir com unhas e dentes, ainda que
sejam obrigados a eventual recuo tático aqui e ali, de acordo com a
conjuntura. Foi o caso de uma declaração dura do presidente da Federação dos Bancos (Febraban) no final de abril, logo depois atenuada por outras lideranças da banca privada. Ou agora, no início de maio, outra nota pública da mesma entidade
também resistindo a baixar os juros – mas no dia seguinte desmentida
por dirigentes de bancos privados, que se disseram dispostos a
“colaborar (sic) com o governo”. Aguardemos para ver até quando e até
onde vai tal disposição.
Assim, como em outros casos de
dependência crônica, o histórico do paciente recomenda cautela na
euforia proporcionada por mudanças repentinas. O governo deve continuar
com suas ações para desamarrar os obstáculos criados, seja pela
utilização do BB e da CEF como pólos mais “saudáveis” do sistema, seja
pela ampliação dos mecanismos de concorrência no setor – aumentando as
condições de portabilidade dos clientes em sua escolha entre os bancos.
Afinal, por mais que os números da queda sejam expressivos, ainda falta
muito chão a percorrer. Por exemplo, ao longo da semana, manchetes davam
conta que os juros de cheque especial teriam caído de 8% para 4% ao
mês. De acordo, foi uma redução expressiva. Mas, ainda assim, a cobrança
de 4% ao mês mantém embutido um “spread” elevadíssimo, tendo em vista
que a remuneração que o banco oferece para o recurso depositado é pouco
maior que 0,5% ao mês. E aqui nem vamos detalhar as absurdas taxas de
administração dos fundos e demais serviços cobrados.
Mudança comportamental a longo prazo
Isso
significa dizer que a agenda de mudanças é longa e inclui itens de
natureza diversa. A sabotagem patrocinada pelos bancos pode, por
exemplo, incluir a paralisia articulada na oferta de crédito, apesar da
queda na SELIC e nas taxas operacionais. Ou ainda um esforço
oligopolista para manter suas margens de ganho. O próprio Ministro
Mantega levou mais de 6 anos, desde a sua posse na Fazenda em março de
2006, para ter uma atitude mais incisiva com relação aos abusos dos
conglomerados – até então, considerados intocáveis - do sistema
financeiro. Apenas há poucos dias atrás, pela primeira vez, ele resolveu
ser mais claro em suas declarações: "Tenho certeza que os bancos
privados vão baixar os “spreads” bancários que são muito altos no país e
que é uma anomalia que tem de ser corrigida". Uma boa medida seria
recomendar ao BC que faça uma revisão do projeto “Juros e “spread” bancário”,
uma série de estudos anuais que foi lançado em 1999 e durou até 2010,
mas que em nada resultou em termos de redução da margem de ganho das
instituições sob a tutela do BC.
A experiência mais recente que a
sociedade brasileira experimentou, e que nos permite algum grau de
analogia com a situação atual, foi o caso da inflação crônica e elevada.
Foram muitos planos de estabilização, inúmeros zeros cortados e novas
moedas adotadas desde o Plano Cruzado em 1986 até o Plano Real em 1994.
Apesar dos equívocos dos planos de ajuste, é inegável que a sociedade
sancionava, a cada momento, a retomada da inflação e a indexação
absoluta. Ao que tudo indica, a nossa dependência crônica para com a
inflação já foi superada, depois de 18 anos de vigência do Plano Real. A
memória inflacionária foi razoavelmente debelada e os agentes
econômicos conseguem se comportar de maneira distinta daquela
irracionalidade dos momentos pré-hiperinflação, com dolarização ou
remarcação diária de preços.
Cabe agora serem criados os padrões
comportamentais e culturais de uma vida de negócios e em sociedade
diferente, que seja marcada pela aceitação generalizada de índices
menores de rentabilidade e remuneração dos ativos. Mas essa mudança
requer paciência, persistência e muita luta. E, principalmente, muita
resistência e enfrentamento aos futuros saudosistas dos tempos de
algumas horas atrás, marcados por elevadas taxas de juros e muito ganho
fácil na esfera estéril da especulação, essa área de proliferação do
financismo parasita.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.