O Brics e a necessidade de uma nova ordem mundial
Comentaristas da nossa malfadada mídia burguesa, ainda fascinadas pelos encantos de um império em decadência, não se cansam de sublinhar as contradições econômicas e políticas entre os países que compõem o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) para sustentar que o grupo não tem unidade nem sentido objetivo para existir. Seria “muito mais uma sigla do que um grupo de países com amplos interesses comuns”, como sugere o articulista do "Estadão" Rolf Kuntz
É fato que os Brics surgiram como um acrônimo criado em 2011 pelo economista Jim O´Neill, chefe de pesquisa em economia global do grupo financeiro Goldman Sachs, num artigo em que reflete sobre as potencialidades de desenvolvimento de quatro países com grande território e população (Brasil, Rússia, Índia e China, a África do Sul foi incluída mais tarde). Sua transformação em grupo econômico com interesses próprios e convergentes é obra de uma sábia engenharia política que envolve Pequim, Brasília, Moscou, Nova Délhi e Pretória.
Viúvas do neoliberalismo
As contradições apontadas pelos
ideólogos e políticos conservadores, que se opõem à política externa do
governo Dilma e morrem de saudades da diplomacia dos pés descalços de
FHC, são reais. Não é difícil perceber, por exemplo, conflitos de
interesses no comércio exterior decorrentes da feroz concorrência no
setor industrial ou divergências de opinião em relação ao Conselho de
Segurança da ONU.
Sabe-se que nem tudo são flores nas
relações entre as nações. Estas geralmente obedecem ao mandamento
dialético de unidade e luta. Além disto, enquanto prevalecer o
capitalismo o caminho do comércio, das finanças e da geopolítica estará
sempre minado por infinitas contradições, especialmente em tempo de
crise, e mesmo as guerras são inevitáveis.
Mas os fatos revelam que também
existem fortes interesses convergentes entre as cinco nações que
justificam a unidade dos Brics e explicam sua crescente projeção como
grupo político em contraposição (a cada dia mais nítida e aberta) ao
decrépito G7. São coisas que as viúvas do neoliberalismo não querem
enxergar. A corrente comercial no interior do bloco, responsável hoje
por mais de 50% do crescimento mundial, saltou “de US$ 27 bilhões em
2002 para estimados US$ 250 bilhões em 2011", conforme notou a
presidente Dilma Rousseff.
Uma ordem obsoleta
O interesse maior do grupo, que vai
ficando mais claro na medida em que a história avança, consiste
precisamente na necessidade de mudança da presente ordem mundial, que se
fundamenta em uma realidade econômica ultrapassada, fruto de uma
correlação de forças que caducou em função do desenvolvimento desigual
das nações.
Tal ordem, ancorada na hegemonia dos
EUA e na liderança do dólar, foi desenhada nos acordos entre potências
capitalistas firmados na cidade estadunidense de Bretton Woods em 1944,
num momento em que a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim. A força da
economia dos EUA era avassaladora na ocasião e sua liderança no mundo
capitalista incontestável e desejada por aliados em pânico com a
expansão do socialismo soviético no leste europeu.
O cenário econômico internacional
sofreu profundas mudanças ao longo das últimas décadas, com o declínio
do poderio econômico relativo dos Estados Unidos, Europa e Japão, e a
ascensão espetacular da China (maior exportadora do mundo e grande
investidora e credora mundial) e, em segundo plano, outros países
considerados “emergentes”.
Crise mundial
A crise mundial do capitalismo,
iniciada no final de 2007 e ainda hoje em curso, aprofundou o processo
de desenvolvimento desigual, reforçando o deslocamento da produção
industrial do Ocidente para o Oriente e a necessidade objetiva de uma
nova ordem internacional, que já não é meramente teórica e ganha corpo e
concretude nas reuniões do Brics.
As bases econômicas da hegemonia
imperialista dos EUA ruíram, de modo que a velha e caduca ordem
proveniente de Bretton Woods é sustentada hoje pela hegemonia
ideológica, assegurada pelos monopólios midiáticos, e pela supremacia
militar dos EUA e da Otan, que por enquanto é incontestável. A crise, a
instabilidade financeira e monetária, o tsunami monetário e o caos
fiscal nos países ricos, sobretudo na União Europeia, são sinais
inequívocos de falência.
Unidade contra os “ricos”
Realçar as divergências e os conflitos
reais ou imaginários no interior do Brics é hoje um osso de ofício da
ideologia dominante e reflete especialmente os interesses dos EUA e do
G7 em conservar a atual ordem e suas instituições.
A última (quarta) reunião dos Brics,
realizada na Índia, avançou nesta direção ao propor iniciativas que
apontam para o fim da hegemonia do dólar como moeda mundial, com acordos
que preconizam relações comerciais e financeiras baseadas nas moedas
dos países que compõem o grupo, a criação de um banco de desenvolvimento
(em contraposição ao Banco Mundial), a revisão do sistema de cotas do
FMI e Bird e a condenação dos desequilíbrios globais engendrados pela
política econômica dos “países ricos”, com destaque para o tsunami
monetário criticado por Dilma.
Ao lado do crescimento das relações
econômicas, a necessidade de transição a uma nova ordem mundial explica e
justifica a unidade do grupo originado por um acrônimo que começou a
ganhar forma, identidade e realidade política em 2009, quando realizou
sua primeira reunião na cidade russa de Ekaterinburgo. O jogo mal
começou.
Umberto Martins é jornalista e assessor da CTB